As mãos de Orlac e O Expressionismo Alemão.
A Obra cinematográfica “As mãos de Orlac” (1924), dirigida por Robert Wiene, foi baseada em uma novela policial de sucesso da época que nos dias de hoje é considerada um clássico da literatura popular, Les Mains D'ORLAC de Maurice Renard. Wiene, quatro anos antes, dirigiu a obra, que foi considerada a de maior repercurssão do movimento expressionista alemão “O gabinete do Dr. Caligari” (1920). Logo após a Primeira Guerra Mundial, percebe-se com freqüência o uso do adjetivo “expressionista” para um grupo de filmes realizados na República de Weimar derivados de uma vertente da arte moderna que surgiu na Alemanha unificada por volta de 1905, o Expressionismo.
Nas palavras de Luiz Nazário em seu livro “As Sombras Móveis”, o termo expressionismo foi criado pelo crítico de arte Herwarth Walden para caracterizar toda arte oposta ao impressionismo. Futuramente, este termo passou a definir toda a arte na qual a forma não nasce diretamente da realidade observada, mas de reações subjetivas à realidade. Segundo Nazário, o expressionismo, já manifestado na pintura, literatura, teatro e nas artes gráficas encontrou no cinema um terreno fértil, ainda aberto para todo tipo de experimentação. Nazário comenta ainda que, de acordo com a crítica alemã, Lotte Eisner, em seu livro Tela Demoníaca: As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo, publicado na França no ano de 1952, o estado de alma e mentalidade dos personagens eram simbolicamente traduzidos pelas linhas, formas e volumes, agregando a decoração como tradução plástica para seu drama.
Nazário destaca ainda que nos filmes expressionistas, todos os elementos de cena são carregados de um sentido maior pertencente ao drama, tornando-se mais densos. Neste cinema, percebemos personagens com uma interpretação bastante característica compostos por um vestuário estilizado, maquilagens que acentuam olheiras marcantes, revelando um simbolismo (melancolia, estado da alma) bem como a utilização de máscaras brancas. A natureza é abolida radicalmente e em seu lugar são utilizados cenários representativos, jogos de luz e sombra, estilização do mobiliario assim como uma arquitetura visionária. Outra característica que podemos citar é fato de muitas vezes, o herói expressionista enfrentar desarmado elementos obscuros (perigos invisíveis, ameaças impalpáveis), como ocorre em “As Mãos de Orlac” que aborda a possibilidade do protagonista conviver com os seus próprios limites a partir de um confrontamento com as conseqüências da verdade.
Na obra analisada,“As mãos de Orlac”, Conrad Veidt interpreta um pianista internacionalmente renomado que após uma longa turnê se encontra focado e ansioso para retornar à sua cidade e reencontrar sua amada esposa Yvonne, interpretada por Alexandra Sorina, que igualmente anseia pelo regresso de seu marido. O casal é retratado ao espectador como um casal feliz e saudável alguns minutos antes de ser jogado em um poço de desespero e terror, pois este evento não ocorrerá exatamente como qualquer um dos Orlacs espera. Nos arredores da cidade de destino de Paul Orlac, existe um problema com um dos interruptores da ferrovia em Montgeron, o trem sai da bitola, descarrilha e ocorre uma colisão entre comboios. Yvonne, que o aguardava na estação, sai correndo para o local do acidente assim que ouve a notícia. Para seu desespero acabou encontrando seu amado no meio dos destroços do trem. Ele está vivo, mas muito ferido. Nesta cena, Wiene registrou de maneira realista, o esforço frenético da equipe de resgate para socorrer os sobreviventes e recuperar os mortos e feridos.
Imediatamente, Orlac é levado para um clínica e o cirurgião Dr. Vinberg consegue tomar as devidas providências. Para desespero de Yvonne, o Dr. alega que Paul vai viver e se recuperar de fato, em termos gerais, mas suas mãos foram cortadas no acidente, e não há simplesmente nada que ele possa fazer sobre isso. Esta notícia soa terrívelmente, pois seria impossível levar adiante uma carreira de pianista sem as mãos. Vinberg se comove com Yvonne até que olha pela janela e vê o carro fúnebre transportando para longe um dos pacientes não foi capaz de salvar, de repente uma idéia incomum ocorre a ele. O médico diz, enigmaticamente Sra. Orlac que possivelmente haja algo que ele possa fazer para ajudar Paul, e depois retira-se para a sua sala de cirurgia, deixando Yvonne descansar no escritório.
Vinberg, então transplantou as mãos de um homem morto em Orlac. Especificamente, as mãos vêm de um assassino em série chamado Vassar que recentemente havia sido executado. Orlac recupera a consciência, e por um momento sente-se aliviado por ter conseguido novas mãos. O Dr. alega que a cirurgia foi um sucesso e que a Orlac estava bem encaminhado em sua recuperação, mas quando o paciente adormece começa a tem tenebrosos pesadelos sobre o misterioso estranho. Orlac começa a indagar ao cirurgião sobre a origem de suas novas mãos e ao descobrir passa a ficar obcecado por elas. Após sua recuperação Orlac é liberado para retornar a sua casa.
A partir daí, somos apresentados a Nero, um cavalheiro de semblante marginal que ameaça a empregada de Orlac e a obriga a ajudá-lo. Ele pede para que a empregada introduza o assunto sobre as mãos a Orlac em uma conversa o mais rápido possível, e mantenha a boca fechada sobre o tema ele.
Não surpreendentemente, o estado emocional de Paulo não melhora muito depois de sua libertação da clínica. A partir daí, Wiene consegue jogar habilmente com o fantasma do destino inerente a certos órgãos simbolicamente significativos (mãos no caso) e suspeitos de transmitir as virtudes ou defeitos do homem a quem eles foram arrancados. Pois, a essa altura da narrativa estamos totalmente dentro do imaginário singular da metamorfose que se seguiu ao implante. Paul continua a ter sonhos perturbadores, começa a ter episódios de sonambulismo, desenvolve novos hábitos estranhos nervoso relacionadas com suas mãos, e ainda descobre que sua caligrafia tornou-se irreconhecível. Naturalmente, ele atribui tudo isso à influência de algum tipo de espírito de Vassar que permaneceu nas mãos quando foram serradas do cadáver do assassino. E se isso fosse verdade, então talvez não quer dizer que as mãos do homem morto um dia pudessem induzir Orlac a assumir os trabalhos sangrentos a que tantas vezes tinha sido colocado? Yvonne e Vinberg defendem que tais noções são absurdas, mas Paul não consegue fazer-se acreditar nelas.
Enquanto seu imaginário tem certeza de que suas mãos querem transformá-lo em um assassino, Orlac tem um problema ainda maior diante dele: os dedos de Vassar não possuem sua destreza no piano. Paul é obrigado a re-adquirir suas habilidades musicais. Apesar do casal possuir dinheiro no banco, o estilo de vida a que estão acostumados implica em gastar muito dinheiro. Com sua renda permanentemente em torno de zero até que Paul seja capaz de tocar piano novamente, coloca uma grande pressão sobre sua a mente que está mal equipada para lidar com isso. Paul não apenas agoniza-se sobre a sua situação financeira, mais também torna-se frustrado com sua incapacidade de tocar. Em função disto, o ritmo de sua recuperação diminui. Eventualmente, a poupança do casal se esgota e Yvonne conclui que a única coisa que poderia ser feita era pedir um empréstimo à seu sogro. Por conta própria, a jovem visita o velho Orlac (interpretado por Fritz Strassny), que odeia seu filho e o deserdou há muitos anos. O Pai de Orlac recusa-se a atendê-la, mas Yvonne acredita que se o próprio Paul o vistasse poderia ter mais sorte.
Por ironia do destino, Paul realmente receberá o dinheiro de seu pai, mas não pelos meios planejados por Yvonne. Quando ele chega à sombria mansão em que seu pai habitava, ele descobre que alguém chegou lá antes e matou o velho com uma facada nas costas.
Orlac recebe uma intimação da polícia, mas no exame inicial o detetive revela dois surpreendentes e aparentemente impossíveis fatos: o primeiro era que a faca com que Orlac Senior foi esfaqueado até a morte era parte de um conjunto que Vassar utilizava para assassinar suas vítimas; o segundo, que havia impressões digitais de Vassar por toda a cena do crime. O inspetor sabe o que fazer com essa informação, enquanto Paul imagina ter cometido este crime. No seu raciocínio, durante um de seus episódios de sonambulismo, guiado pelas memórias latentes das mãos de Vassar, recuperou uma das armas do assassino e realizado o crime. Além disso, ele por toda a sua vida odiou seu pai quase tanto quanto seu pai o odiava. O velho era riquíssimo e não tinha parentes vivos além de seu filho distante, fazendo com que sua morte aparente extremamente conveniente para que Paul se beneficiasse.
Pensativo, Orlac pára em pub, quando é abordado por Nero, fingindo ser Vassar com uma cinta em volta do pescoço, supostamente guilhotinado e um par de luvas de aço "substituindo" as mãos cortadas. O impostor conta a Paul uma história sobre como supostamente o Dr. Vinberg o reanimou como parte experiência maluca e o chantageia para não entregá-lo à polícia. A história é tão bizarra que automaticamente temos indícios que tenha sido inventada a fim de enlouquecer Paul.
A essa altura, o espectador já imagina que ele não fez tal coisa, devido ao comportamento obscuro de Nero. Orlac decide se entregar à polícia e conta sobre a chantagem. O detetive resolve armar uma cilada para Nero, mas o malandro alega que ele não é o assassino, pois as digitais não eram dele e sim de Vassar e quem possui as mãos de Vassar é Paul. Então, quando tudo caminha para uma tragédia, um homem inocente vai ser culpado, porque esse é o seu destino, acontece a parte mais bizarra do filme: A empregada surge com uma luva de borracha com as impressões digitais que incriminam Nero e descobrimos que Vassar foi acusado injustamente, pois nunca havia matado ninguém, tudo fora um plano de Nero. A partir daí, Paul faz as pazes com as suas mãos.
Apesar dos filmes expressionistas apresentarem vários gêneros e estilos, tinham muitos elementos em comum ao expressar um sentimento de opressão e revolta em relação ao mundo com ênfase em elementos visuais trabalhados de forma a atingir o efeito de “choque”. Percebe-se freqüentemente no expressionismo alemão situações fantásticas enganosas que jogam personagens e público dentro de histórias de desmascaramento do sobrenatural, e que fazem um claro apelo ao senso de realidade e a uma relação lúdica com o mundo da imaginação. Em “As mãos de Orlac”, Wiene sabiamente conseguiu dar uma explicação racional para um caso aparentemente sobrenatural (ou pelo menos paranormal), deixando claro que todo o mal de Orlac não estava em suas mãos transplantadas e sim em seu imaginário.
Bibliografia
CANÉPA, Laura Loguercio. Expressionismo Alemão. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006.
NAZARIO, Luiz. As sombras móveis: atualidade do cinema mudo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, Laboratório Multimídia da Escola de Belas Artes da UFMG, 1999.